Minha terra, meu viver

sábado, 11 de agosto de 2007

Fim de Tarde

Sempre tive muito medo da morte, a minha angústia...
Durante tardes inteiras ficava pensando em como seria o último dia de minha vida...Chorava ao pensar. Deve ser triste morrer afogado - não é doce morrer no mar. Deve ser desesperador morrer queimado, enforcado, assassinado, abandonado...
Não gosto de pensar em morte, mas Ela me vem inevitavelmente, surge-me inexplicavelmente e se põe a conversar comigo, a me fazer medo, a me contar seus segredos e suas inquietações...
Assim, no dia que terminei de bordar o último deus da Pérsia, a Caetana apareceu-me de repente. Olhou-me de soslaio, não falou nada e sentou-se ao meu lado.
Eu senti o velho calafrio da empreitada. Senti os pulsos desmaterializando, os cabelos fraquejando, as pernas amolecerem.
A voz da sobrehumana ficou mais grave, mais erguida...E eu conhecia bem aquele tom. Ora,pois a ouço desde muito criança, quando acordava nas madrugadas aflitas procurando por quem estava me chamando. E iria encontrar na sala a voz irreconhecível.
Quantas vezes pedi mamãe para dormir comigo,porque eu tinha medo no princípio?
-Inúmeras.
Quantas vezes contei para minhas irmãs que eu conseguia ouvir outras vozes?
-Infinitas.
Mas elas não me creditaram confiança, apostaram ser minha loucura, não apuraram os ouvidos para perceber minha agonia. Só depois de muito tempo, porque só o tempo consegue transformar, é que passaram a acreditar em meus devaneios e perceberem que não o eram. Naquela tarde, pois, não precisava mais que ninguém acreditasse em mim, nem que me compreendessem...Já havia me acostumado com a voz, apesar de nunca ter deixado de temê-la. Guardei minhas agulhas na gaveta, com as linhas e o desenho rabiscado. Embrulhei a manta num pedaço de papel perfumado, para ficar mais suave. Pus uma fita vermelha com bordas aneladas. Ficou uma maravilha!
- Matias, põe no quarto de Anastácia.
Sentei na cadeira de balanço, cuidei de trancar a porta e acender o candeeiro antes. Ainda pude ouvir a voz da menina ao chegar e a de Matias a lhe mostrar o presente. Ouvi ainda seus passos chegando perto e sua doce voz a chamar pelo meu nome.
Mas a outra voz, a que sempre me chamou, estava mais grave e mais erguida. Eu a ouvia mais forte...E, ainda, eu a sentia! A Caetana segurou minha mão, como uma antiga conhecida, e pôs a olhar-me definitiva. Eu já ouvia as vozes dos parentes mais distantes e a outra tão mais perto. Cerrei meus olhos, apurei meus ouvidos e o que ouvi foi um farfalhar de vozes distintamente entorpecedoras.

sábado, 4 de agosto de 2007

Ms.Milla

Posted by Picasa

Transplante

Apoiou as mãos na parede... Os tijolos pareciam vibrar! Na verdade, até a luz mostrava-se tremulada e confusa. Mas estava óbvio que já era dia, o ambiente estava mais iluminado, ela sentia. Viu quadros sinuosos na parede, aquarelas distintas entre espelhos gigantes. Recostou-se num vaso próximo, e esse se mostrou também ser uma novidade, pois ela nunca o tinha visto ali. Afinal, nem ao menos sabia onde estava de fato: aquelas paredes lhe eram estranhas, aquela sala lhe era desconhecida, aquelas pinturas lhe eram irreconhecíveis... Andou por entre os tapetes estendidos no chão, eles eram lindos! Reconheceu aquele desenho bordado aos seus pés, eram os deuses desenhados pela sua avó, a mesma figura da manta que a tão querida velhinha lhe dera antes de falecer.
Lembrou-se da avó, e suas lágrimas revelaram-se quentes.
Fez uma prece silenciosa, mas notou que ela poderia gritar bem alto, parecia estar sozinha ali. E como se dava aquilo? Acordara num lugar desconhecido, decorado com lindos quadros, belos tapetes e vasos magníficos, todos coloridos, desenhados com traços distintos, alternados com espelhos flutuantes. Flutuantes? Sim, eles agora se desprendiam das paredes, pareciam profundos, reveladores de lugares mágicos e pairavam sobre sua cabeça. Olhou confusa ao redor, percebeu o movimento das aquarelas. Ela se mechiam! Os desenhos não eram estáticos, ganhavam vida e forma Parecia sonho, mas ela estava perfeitamente acordada. Loucura talvez? Não, loucura não se dá assim de repente. Passou a mão na cabeça para aliviar aquela confusão, e o que ouviu foi um farfalhar de vozes ao longe.
Correu para o lado oposto da sala:
-Há alguém aí?
Silêncio.
Devia estar escutando coisas. Começava a achar que estava mesmo ficando louca.
Sua voz ecoou minutos depois, num tom diferente e notadamente distinto do seu.
-Há alguém aí?
Mas eco não tarda tanto, há um limite. E aquela era uma voz masculina, grave, que parecia familiar.
Olhou assombrosa para os lados, queria saber quem estava ali, que brincadeira era aquela, que verdade havia em tanta confusão. Viu uma janela mais a frente. Mas a janela há pouco tinha as cortinas fechadas! Agora o sol iluminava lentamente o vidro. Aproximou-se. Seus joelhos, porém, cambalearam quando viu também aproximar-se do outro lado da janela um vulto. Coração disparou, pés travaram, mãos suaram... Não agüentava mais tanto mistério, tanta inquietação, tanta loucura.
Tomou-se de coragem, seguiu adiante. A covardia não iria trazer-lhe sossego.
Aproximou-se lentamente da janela e a abriu devagar conforme sua força.
-Pronto. Você já pode enxergar. Bem vinda ao nosso mundo das luzes!